É incontestável a influência das runas em sua época. Quando os grandes líderes e sábios conselheiros da Inglaterra anglo-saxônica reuniam-se em conclave, davam a suas deliberações secretas o nome de “runas”, e quando o Bispo Wulfila fez sua tradução da Bíblia para o gótico, no século XIV, na passagem “os mistérios do reino de Deus” (Marcos, 4:11), empregou a palavra “runas” para “mistérios”. Mas um mistério não é apenas algo mantido em segredo por um grupo de pessoas; pode ser ainda algo que transcenda a mera inteligência racional, algo que pode ser entendido ou experimentando, mas não pode ser traduzido em palavras. Um silêncio-plenitude, quando a alma começa a falar — uma verdade que não pode ser falada, mas apenas calada.
No
nosso sistema de escrita, as letras, individualmente, indicam sons — mas não
significados. As runas, porém, têm dupla função de representar tanto sons como
palavras, isto é, elas têm um valor hieroglífico como também fonético. Nesse
aspecto, são semelhantes aos alfabetos hebraico e céltico, que são alfabetos a
usar substantivos como nomes de letras. Nessas culturas, essa dupla função das
letras é acompanhada por uma filosofia mística absolutamente desenvolvida, que
considera as letras a origem da sabedoria da vida, para todo aquele que se
interessar por investigá-las. A letra rúnica — ou runastafr — tornou-se um
repositório para intuições, enriquecido segundo a habilidade do praticante do
runemal, a arte de lançar as runas.
Como
os celtas, com quem tinham muito em comum, os teutônicos preferiam confiar
principalmente na memória para a transmissão de sua sabedoria arcana. Como os
bardos e druidas, que decoravam os ensinamentos de seus predecessores, assim o
xamã rúnico memorizava os sentidos e usos das diversas runas.
Os
iniciados rúnicos não eram sacerdotes, no sentido convencional da palavra.
Diferente das fés pagãs comuns no sul e oeste da Europa, que eram hierárquicas
e hierofânticas em sua organização, a tradição rúnica é essencialmente
xamanística. O xamã rúnico usualmente trabalhava sozinho, não em grupo; e não
haviam graus reconhecidos — apesar de, obviamente, alguns iniciados serem
melhores do que outros. Entretanto, pode-se assegurar que não existiam
incompetentes entre eles, pois, naqueles dias, um xamã era recompensado somente
pelos resultados apresentados.
Entre
os teutônicos e vikings, o xamã rúnico usava uma indumentária pomposa, que o
tornava facilmente reconhecido. Homenageado, bem acolhido, temido, esse xamã
era figura familiar nos círculos tribais. Alguns deles se estabeleciam num
lugar, atendendo as necessidades das vilas ao redor, enquanto que outros
viajavam por todo o país, trabalhando quando havia algo a fazer. Não havia
discriminação sexual: tanto homens como mulheres podiam se tornar um xamã. O
autor anônimo da Saga de Erik, o Ruivo, do século XIII, fornece uma vívida
descrição de uma praticante no ofício rúnico:
“Ela usava um capa azul, incrustada de pedras na bainha, e cheia de tiras e penduricalhos. Em torno do pescoço e cobrindo sua cabeça, ela usava um capuz forrado de peles brancas, botas de couro de bezerro com a pele branca para o lado de fora. Em uma das mãos, ela carregava um bastão com uma empunhadura de metal na extremidade, e ao cinto, apertando o vestido comprido, pendia uma bolsa com encantamentos e amuletos”.
O
uso de certas peças de roupa “pelo avesso” há muito é característica dos xamãs,
simbolizando sua separação do mundo normal, e uma espécie de indistinção das
fronteiras aceitas entre o passado, o presente e o futuro, o masculino e o
feminino, o animal e o humano, os vivos e os mortos.
Para
o pensamento pré-cristão, a terra e todas as coisas que nela habitavam tinham
vida. Gravetos e pedras eram utilizados na adivinhação rúnica, pois, como
objetos naturais, corporificavam poderes sagrados. Os símbolos rúnicos eram
inscritos em pedaços de madeira, gravados
no metal ou riscados no couro, sendo depois tingidos com pigmentos em
que o sangue humano às vezes era misturado, a fim de se intensificar a potência
do feitiço. As runas mais comuns eram seixos lisos e achatados, com símbolos ou
hieróglifos pintados em um dos lados. Os praticantes do runemal sacudiam sua
bolsa e lançavam as pedras no chão; as que caíam com os hieróglifos para cima
eram então interpretadas.
A
descrição sobrevivente mais explícita deste procedimento nos vem por intermédio
de Cornélio Tácito (55? - 117 d.C.), orador e historiador romano; escrevendo no
ano 98, em seu Germânia, capítulo 10, a respeito de práticas em uso entre as
tribos teutônicas, ele registra:
“Mais do que quaisquer outras pessoas, eles têm o maior respeito pela adivinhação e pelos sorteios. Seus procedimentos para lançar a sorte são simples. Cortam um galho de uma árvore frutífera e dividem-no em varetas, nas quais marcam certos sinais distintivos, em seguida espalhando-as ao acaso, sobre um pano branco. Então, o sacerdote da comunidade (se a adivinhação for pública), ou o chefe da família (se for particular), após uma invocação aos deuses com os olhos erguidos para o céu, recolhe três pedaços, um de cada vez, que vão sendo interpretados conforme os sinais previamente marcados neles”.
As
runas eram muito respeitadas no norte primitivo, sendo usadas para a escolha de
sacrifícios ou vítimas para execução, quando a maior parte de um grupo deveria
ser poupada. Neste caso, as runas eram consideradas agentes dos deuses, que
escolhiam quem deveria morrer.
Embora
as provas documentais de que dispomos tenham sido escritas por monges, sendo
portanto de esperar que fossem largamente hostis às runas, encontramos
registros sobre diversas aplicações da adivinhação rúnica. Um importante
exemplo disso é encontrado na obra do monge Alcuin, chamada A vida de São
Willibrord. Willibrord era um monge cristão enviado como missionário para a
Frígia, um dos principais centros da crença pagã. Durante suas andanças pelo
país, Willibrord não foi molestado até cometer o sacrilégio de batizar novos
cristãos numa fonte sagrada, matando as vacas sagradas que eram mantidas ali.
Levados
à presença do rei, os cristãos foram condenados mas o monarca ordenou que todos
os dias, durante três dias, fossem lançadas runas para escolher três deles para
execução. Embora outros tivessem sido mortos, Willibrord não foi escolhido
pelas runas, sendo libertado para continuar sua missão. Isso foi interpretado
pelos cristãos como intervenção direta de Deus, por intermédio das runas, para
salvar o pregador.
Além
de escolher quem deveria viver e quem deveria morrer, as runas eram consultadas
regularmente como parte normal da estratégia militar. Na obra A Vida de São
Ansgar, escrita no século IX, encontramos uma narrativa sobre o uso das runas
pelos militares suecos e dinamarqueses. Anund, o exilado rei da Suécia, e seus
aliados dinamarqueses tinham ocupado a cidade santa de Birka, na parte oriental
da Suécia. A cidade tinha sido evacuada, permanecendo ali apenas o prefeito
Herigar, com a intenção de oferecer um resgate aos vitoriosos para que não
saqueassem o lugar. Os dinamarqueses decidiram lançar as runas para verificar
se era a vontade dos deuses que a cidade fosse poupada.
“Eles determinaram que não seria possível que lograssem seus objetivos sem colocar em risco sua própria segurança, e que os deuses não permitiriam que o lugar fosse saqueado. Perguntaram, então, para onde deviam ir, de modo a obter dinheiro... e apuraram que deviam ir para uma certa cidade a alguma distância dali, na fronteira das terras que pertenciam aos eslavônios. Os dinamarqueses, acreditando que essa ordem tinha vindo do céu, retiraram-se do lugar e apressaram-se a encontrar um caminho que os levasse à outra cidade”.
As
runas eram um artefato mágico utilizado largamente também pelos camponeses, e
camponeses estão por demais preocupados com este mundo para gastar mais tempo
com qualquer outro. Sua magia devia prover algo palpável, e qualquer declaração
que magia usada em proveito próprio era necessariamente má era rapidamente
desmentida.
Igualmente,
os camponeses entendiam que não há nada gratuito. O campo extra cultivado
significava um aumento proporcional de trabalho. O dinheiro extra conseguido
por magia vinha com responsabilidades para a comunidade. E assim por diante.
Uma dádiva demandava outra, e era melhor não prometer do que prometer demais.
Assim,
o escopo da magia rúnica era circunscrito. Não é de se admirar, então, que não
haja contos de magos rúnicos empregando seus poderes para adquirir posição
política. Que as inscrições existentes estejam dirigidas para algum efeito
prático: defesa contra inimigos; munição para um melhor ataque; melhoria da
fertilidade e saúde; proteção do solo funeral contra invasões; espantando demônios,
etc.
Num
mundo onde o anonimato e a burocracia ásperos ameaçam nos engolir, não é de
surpreender que as runas ressurjam. Elas foram criadas em semelhantes
condições, quando da existência precária do indivíduo e da comunidade. Pois,
assim como as tribos teutônicas, hoje a “tribo” humana se vê ameaçada. As runas
oferecem o conforto necessário quando enfrentando um inimigo que parece
invencível. Hoje, nos voltamos para questões sobre equilíbrio e
pureza na ação, na vida, nos motivos. E, por isso, nós nos voltamos para as
runas.
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