Runemal: A Arte de Lançar as Runas

quarta-feira, dezembro 28


As primeiras runas não foram escritas em papel, mas engastadas em pedra ou esculpidas em argila ou madeira, e por causa disso elas obtiveram sua distinta forma angular. O conjunto de runas deve ser feito de alguma substância natural, seja tirada da terra (como a argila) ou produzida pela terra (como a madeira). Plástico não é recomendado porque está fora de harmonia com as vibrações internas dos símbolos rúnicos, que são terrenos e práticos, pois o plástico é um derivado de petróleo, e portanto, vibra aos impulsos de água, que podem ser decepcionantes e ilusórios se não forem manejados com cuidado.
            
Caso se decidir colorir o conjunto de runas, ou escolher um já colorido, todas as runas devem estar pintadas ou tingidas em uma das cores tradicionais, que são: vermelho para energia (muito efetivo para o xamã); verde para crescimento (normalmente escolhido para a vólva (xamã feminina) ou pelos seguidores da Deusa); ou azul — a cor consagrada a Odin, deidade tutelar da sabedoria rúnica. Além das runas, se requererá dois outros itens antes de se estar pronto a começar o treinamento divinatório rúnico.
            
O primeiro deles é uma pequena sacola para carregar as runas. Isto facilita o transporte das runas de lugar para lugar, e também assegura que não se perca qualquer uma das pedras. Como as próprias runas, a sacola deve ser feita de material natural, como lã, algodão, veludo ou linho, ao invés de um tecido sintético ou um que seja a mistura de fibras naturais e artificiais.
            
A fim de aumentar o poder das runas, o xamã teutônico sempre carregava sua sacola rúnica consigo, usualmente atada à cintura. Pode-se alcançar muitos dos mesmos resultados dormindo com sua sacola debaixo do travesseiro, ou embrulhando-a na suéter enquanto se vê TV ou se lê um livro. Nesse caso, o melhor lugar para colocar a sacola é sobre o plexo solar — a pequena depressão situada entre o umbigo e a garganta. Este é um ponto de poder no corpo e o contato com ele permitirá às runas familiarizarem-se e harmonizarem-se à taxa vibratória pessoal. A diferença feita no aperfeiçoamento das adivinhações, por estes meios, é surpreendente. Muito comumente o progresso obtido depois de duas ou três adivinhações é devido tanto à manipulação constante das runas como da familiaridade com os símbolos.
            
À semelhança de muitos outros jogos oraculares, sagrados e seculares, as runas devem ser lançadas sobre um campo. O campo representa o mundo que está sempre vindo a ser e extinguindo-se. Este é o segundo item necessário à adivinhação rúnica. O tecido vem providenciar às runas um fundo neutro, a fim de não distrair a atenção do xamã. Por isso, é melhor evitar cores vibrantes e padrões berrantes, assim como franjas e símbolos bordados. A melhor escolha é um  guardanapo de linho, que perfaz uma excelente superfície de trabalho, do tamanho exato, sancionado pela tradição e pelo uso.
            
Há pessoas que reservam um período especial em cada dia, dedicado ao lançamento das runas. Outros preferem uma abordagem ainda mais formal: acendem uma vela, talvez uma vareta de incenso e ficam alguns momentos em concentração. Há também aquelas que acham proveitosa a meditação sobre a respiração: simplesmente acompanham o ato de respirar, inspirando e expirando; deixam que as respirações sejam prolongadas, fáceis e interligadas. Expulsam da mente todos os problemas e preocupações, nem que seja apenas naquele momento. Talvez se queira formular uma prece, em particular caso se estiver diante de uma situação intensa ou turbulenta.
            
A focalização é importante. No entanto, ainda que surja a intromissão do rotineiro ato de viver, sempre se poderá consultar as runas sem uma preparação formal. É a necessidade de cada um que as coloca em ação. Um momento particularmente bom para consultar as runas é quando já se exauriram todos os recursos e se enfrenta uma situação a respeito da qual se possui informação limitada ou incompleta. Deve-se focalizar o assunto com clareza na mente — pois isto estabelece um  limite definido para a interpretação da resposta —, introduzir a mão na sacola, fazer contato com as pedras e retirar uma Runa. As runas corretas sempre irão se aderir aos dedos.
            
A formulação da questão tem um papel decisivo no êxito ou no fracasso da consulta (no sentido da compreensão ou não da resposta obtida). O oráculo nunca falha. Suas respostas são sempre claras e  precisas; porém o nosso entendimento é, muitas vezes, turvo e confuso. As runas sempre mostram o que é; nós, entretanto, muitas vezes não conseguimos ver o que elas nos mostram, pois não queremos ou não sabemos ver. Todas as barreiras e obstáculos à compreensão da  resposta estão em nós e não nas runas. Enquanto manifestação do inconsciente, as runas usam a linguagem simbólica, que é própria daquele, e não o discurso racionalizado que o consciente habitualmente articula. Para que o significado se aclare, teremos de aprender o modo de concatenação dessas imagens simbólicas, ao invés de insistirmos em tentar decodificá-las segundo padrões que lhes são estranhos.
            
A primeira grande dificuldade que enfrentamos é saber com clareza e precisão o que buscamos. Só quem sabe o que procura pode encontrar. Na formulação da pergunta, explicitamos para nós mesmos o que estamos buscando. A pergunta incorretamente formulada revela uma compreensão imperfeita do que procuramos saber, o que, por si só, já dificulta ou mesmo impossibilita que o reconheçamos.
            
Mas o que é uma questão correta? Ela se caracteriza por sua intenção e por sua  forma. A intenção correta consiste na adequação ao propósito e finalidade das próprias runas, ou seja, auxiliar o homem na busca da verdade, na busca de si mesmo, já que é em si que ele há de encontrá-la. A consulta oracular, no sentido exato da expressão, não é outra  coisa  senão a busca do que é, na transcendência do que parece ser. A pergunta que busca o que é, que procura o real para além do aparente, possui a intenção correta.
            
O oráculo não é uma máquina de informações, mas um ser vivo, que encerra suprema sabedoria e compaixão. Aproximarmo-nos dele requer humildade, sinceridade e ardor. Só sabiamente caminhando se pode chegar à sabedoria. Ela é seu próprio requisito. É a sabedoria que nos conduz à sabedoria. Realizá-la é possível, tão-somente porque já a possuímos, desde todo sempre, em nós mesmos.
            
Ao lado da intenção correta, supõe-se a forma correta. Isso significa estarmos aptos a dar expressão de modo claro, inequívoco, sintético e preciso ao que procuramos. A questão formulada de modo ambíguo ou vago evidencia uma visão turva e confusa do que se busca, e resulta na incapacidade de se reconhecer aquilo que não se sabe ser o objeto da busca.
            
Uma pergunta não deve, também, ter mais de um significado visado. Se, numa questão, estão envolvidos dois ou mais temas, deve-se subdividi-los em tantas perguntas quantos forem os núcleos de significados intencionados. Assim, cada pergunta deve indagar por uma única coisa.
            
O caráter sintético da formulação é também muito importante. Antes da consulta às runas, a pergunta deve ser lapidada, cada aresta de imprecisão aparada, até que se chegue ao ponto em que só o núcleo essencial brilhe, claro e solitário.
            
Ocasionalmente, talvez se constate que o conselho recebido não parece ajustar-se à questão exposta. Quando isto ocorrer, deve-se considerar a possibilidade de que as runas tenham sintonizado a uma questão primordial, algo que se tem evitado ou do que não se tem percepção consciente. Essa primordialidade rúnica parece ser um dispositivo automático contra falhas. Da mesma forma, ao encontrar-se em um  dilema, em saber qual a questão primordial, não se deve preocupar; as runas farão a seleção em nosso lugar e se referirão à questão que exige uma resolução mais imediata.
            
Entre as runas, nove delas oferecem o mesmo significado, pouco importando a maneira como são retiradas da sacola. As outras dezesseis apresentam sentidos diferentes, se lidas eretas ou reversas. A leitura reversa chama a atenção para os aspectos de uma situação que podem impedir o movimento ou para o fato de que o movimento, em si, poderá ser inadequado no momento.
            
É bom recordar que o surgimento de uma Runa reversa não é motivo para alarme, sendo antes uma indicação de que cuidado e atenção são requisitos exigidos para nossa conduta se tornar correta. Uma leitura reversa freqüentemente assinala a presença de uma oportunidade para desafiar algum aspecto do comportamento, alguma área na vida que, até agora, não se esteve querendo enfrentar.
            
Enquanto se estabelece a prática de trabalho com as runas, talvez se considere conveniente o registro da  orientação  recebida. Poder-se-á querer anotar as pedras lançadas, bem como uma breve interpretação das mesmas num diário. Anota-se a hora, data e condições prevalecentes na vida, naquele momento. Esse diário permitirá a observação do progresso feito, à medida que se for trabalhando com as runas. O registro destas leituras num diário rúnico possibilitará uma maior familiarização com as runas e seu simbolismo. No correr do tempo, ter-se-á experiência bastante para julgar por si a relevância e precisão do Oráculo, como um guia para a mudança pessoal.
            
Muitas pedras e seus sentidos correlatos podem ter significado especial somente para um indivíduo. Desde que este é um sistema psíquico onde métodos simbólicos são empregados, quanto mais energia se colocar na leitura mais significativos serão os resultados. Ao se desenvolver suas próprias habilidades com o uso das pedras, as runas auxiliarão a cada um, guiando-o pelos mares não cartografados que jazem à nossa frente.

A Mitologia Rúnica

quarta-feira, dezembro 21


A perspectiva do mundo xamanístico é consistente através do mundo. Mais ainda, é tão internamente consistente quanto as maiores religiões do mundo. O xamanismo, por exemplo, tem uma imagem central da árvore ou pilar do mundo. Na mitologia teutônica, este papel era desempenhado por Yggdrasil, o freixo da existência, que espalhava seus galhos sobre os nove mundos da criação, sustentando a vida deste Universo e presidindo o próximo, quando o nosso tiver perecido.

Odin ganhou o poder das runas quando ficou pendurado por nove noites na Yggdrasil, ferido pela própria lâmina, atormentado pela fome, pela sede e pela dor, sem auxílio e sozinho, até que, antes de cair, avistou as runas e conseguiu apanhá-las, em um último e tremendo esforço. Isto foi a sua iniciação xamanística, e é muito significativo que o mito tenha transformado uma árvore comum na árvore da existência. Uma das Eddas Poéticas nos relata o evento desta forma:

Vi-me suspenso naquela árvore batida pelo vento,
Ali pendurado por nove dias e noites,
Golpeado, ferido por minha própria lança,
Eu era uma oferenda feita a Odin.
Eu, uma oferenda a mim mesmo,
Naquela árvore que ninguém conhece
Para onde vão suas raízes.
Ninguém me deu de comer,
Ninguém me deu de beber.
Perscrutei as mais longínquas profundezas
Até vislumbrar as runas.
Gritando, as ergui
E então, desfaleci.
Desde então comecei a prosperar,
E minha sabedoria crescia enquanto
 Eu melhorava e frutificava.
Uma palavra levava a outra,
Uma palavra me levava a muitas outras,
E uma ação me ganhou muitas ações.

Formas similares de iniciação podem ser encontradas por todo o mundo, mas em todos os outros casos o sacrifício é oferecido a um deus. Nunca antes o sacrifício foi para si (exceto Jesus Cristo, que se sacrificou como uma parte da Trindade para outra parte da mesma). Em termos do processo esotérico, então, parece claro que a intenção de Odin era tornar-se um deus. É também claro que o sacrifício resultou na  descoberta, não na invenção das runas. A recepção das runas por Odin verificou-se através de uma revelação xamanística. Com o que sabemos de Odin, pode-se sugerir que o homem era um xamã do culto do deus Tyr.

A palavra xamã deriva da palavra tungue-siberiana saman, que significa “exaltado” ou “excitado”. Quando ele obteve o conhecimento das runas, ele juntou todos os elementos díspares de instrução àquelas pedras. Eis porque elas possuem tal ênfase nos poderes naturais. As runas eram, e ainda o são, de fato, uma combinação de vários elementos do ensinamento xamanístico, que tangem ao encontro do adepto as forças do mundo, ou mana. Mana significa “poder invisível”, e captura a idéia de que o mundo é permeado por forças vivas. Deve ser lembrado que, para o xamanismo, a natureza é mágica, da mesma maneira que as fórmulas científicas são para um físico.

As runas incluíam símbolos há  muito usados pelas tribos, que ainda podem ser vistos nas gravações Hallristingnor. Somam-se a isso algumas letras do grego, do romano e do etrusco. Em alguns pontos, valores fonéticos foram consignados puramente por causa da similaridade da forma.

O simbolismo do fulgor atormentado de realização, que permitiu a Odin liberar todo o potencial das runas, descreve um raro momento na História quando os dois lados do cérebro se uniram pela reação unificada a um único sinal. A pesquisa moderna sobre a diferença entre os hemisférios direito e esquerdo do cérebro tem demonstrado que é o lado esquerdo o que possui as habilidades funcionais necessárias à leitura e escrita. O alfabeto, e o futhark em sua qualidade de escrita, simboliza uma representação fonética completa da linguagem, de maneira qualitativamente diferente dos sistemas hieroglífico e ideográfico e demais sistemas não-fonéticos de anotação da linguagem. No sistema lingüístico ocidental, dominado pelo alfabeto, os ferimentos físicos do lado esquerdo do cérebro acham-se vinculados à perda parcial ou total das capacidades de ler e escrever.
            
Estudos sobre as habilidades relativas de qualquer hemisfério cerebral têm demonstrado que os caracteres logográficos, como os hieróglifos egípcios primitivos ou os símbolos usados nas artes tradicionais da Europa, por exemplo, em calendários, são reconhecidos com maior eficiência pelo lado direito do cérebro. Do mesmo modo, a escrita não-fonética denominada Kanji, dos japoneses, não é processada pelas mesmas áreas do cérebro que o Kana, o sistema fonético utilizado ao lado do Kanji. As pessoas que sofrem danos cerebrais em certas áreas distintas só conseguem entender um ou outro sistema, dependendo da localização do ferimento. A representação de hieróglifos não-fonéticos no lado direito do cérebro em oposição ao esquerdo pode até ser superior ao uso do lado esquerdo para o sistema fonético.
            
Sem qualquer sombra de dúvida, os modernos pictogramas de sinalização rodoviária são mais fáceis de reconhecer que as instruções por escrito. Se os sistemas pré-alfabéticos de escrita e codificação adivinhatória eram manipulados pelo hemisfério cerebral direito, então as diferenças entre os meios de comunicação fonéticos e não-fonéticos talvez sejam mais fundamentais do que se pensava. A transição do uso das runas de sua condição pictórica primitiva para seu emprego num alfabeto assinalou uma mudança no uso dos hemisférios cerebrais da direita para a esquerda, do intuitivo para o analítico. O toque de genialidade está no fato de que as runas conseguiram ligar simultaneamente os dois hemisférios cerebrais. Quando isto foi feito, as runas tornaram-se mais fáceis de entender. Ao invés de uma coleção de símbolos, elas se tornaram uma descrição de um tipo de processo mágico. Por exemplo, onde o alfabeto hebreu é uma série de símbolos ou ilustrações sublimados, as  runas  são  uma série de descrições de forças e sua propagação. Elas são uma descrição única do mundo mágico em torno de nós, que devemos entender melhor.

A Filosofia Rúnica

quarta-feira, dezembro 14


É incontestável a influência das runas em sua época. Quando os grandes líderes e sábios conselheiros da Inglaterra anglo-saxônica reuniam-se em conclave, davam a suas deliberações secretas o nome de “runas”, e quando o Bispo Wulfila fez sua tradução da Bíblia para o gótico, no século XIV, na passagem “os mistérios do reino de Deus” (Marcos, 4:11), empregou a palavra “runas” para “mistérios”. Mas um mistério não é apenas algo mantido em segredo por um grupo de pessoas; pode ser ainda algo que transcenda a mera inteligência racional, algo que pode ser entendido ou experimentando, mas não pode ser traduzido em palavras. Um silêncio-plenitude, quando a alma começa a falar — uma verdade que não pode ser falada, mas apenas calada.

No nosso sistema de escrita, as letras, individualmente, indicam sons — mas não significados. As runas, porém, têm dupla função de representar tanto sons como palavras, isto é, elas têm um valor hieroglífico como também fonético. Nesse aspecto, são semelhantes aos alfabetos hebraico e céltico, que são alfabetos a usar substantivos como nomes de letras. Nessas culturas, essa dupla função das letras é acompanhada por uma filosofia mística absolutamente desenvolvida, que considera as letras a origem da sabedoria da vida, para todo aquele que se interessar por investigá-las. A letra rúnica — ou runastafr — tornou-se um repositório para intuições, enriquecido segundo a habilidade do praticante do runemal, a arte de lançar as runas.

Como os celtas, com quem tinham muito em comum, os teutônicos preferiam confiar principalmente na memória para a transmissão de sua sabedoria arcana. Como os bardos e druidas, que decoravam os ensinamentos de seus predecessores, assim o xamã rúnico memorizava os sentidos e usos das diversas runas.

Os iniciados rúnicos não eram sacerdotes, no sentido convencional da palavra. Diferente das fés pagãs comuns no sul e oeste da Europa, que eram hierárquicas e hierofânticas em sua organização, a tradição rúnica é essencialmente xamanística. O xamã rúnico usualmente trabalhava sozinho, não em grupo; e não haviam graus reconhecidos — apesar de, obviamente, alguns iniciados serem melhores do que outros. Entretanto, pode-se assegurar que não existiam incompetentes entre eles, pois, naqueles dias, um xamã era recompensado somente pelos resultados apresentados.

Entre os teutônicos e vikings, o xamã rúnico usava uma indumentária pomposa, que o tornava facilmente reconhecido. Homenageado, bem acolhido, temido, esse xamã era figura familiar nos círculos tribais. Alguns deles se estabeleciam num lugar, atendendo as necessidades das vilas ao redor, enquanto que outros viajavam por todo o país, trabalhando quando havia algo a fazer. Não havia discriminação sexual: tanto homens como mulheres podiam se tornar um xamã. O autor anônimo da Saga de Erik, o Ruivo, do século XIII, fornece uma vívida descrição de uma praticante no ofício rúnico:

“Ela usava um capa azul, incrustada de pedras na bainha, e cheia de tiras e penduricalhos. Em torno do pescoço e cobrindo sua cabeça, ela usava um capuz forrado de peles brancas, botas de couro de bezerro com a pele branca para o lado de fora. Em uma das mãos, ela carregava um bastão com uma empunhadura de metal na extremidade, e ao cinto, apertando o vestido comprido, pendia uma bolsa com encantamentos e amuletos”.
           
O uso de certas peças de roupa “pelo avesso” há muito é característica dos xamãs, simbolizando sua separação do mundo normal, e uma espécie de indistinção das fronteiras aceitas entre o passado, o presente e o futuro, o masculino e o feminino, o animal e o humano, os vivos e os mortos.

Para o pensamento pré-cristão, a terra e todas as coisas que nela habitavam tinham vida. Gravetos e pedras eram utilizados na adivinhação rúnica, pois, como objetos naturais, corporificavam poderes sagrados. Os símbolos rúnicos eram inscritos em pedaços de madeira, gravados  no metal ou riscados no couro, sendo depois tingidos com pigmentos em que o sangue humano às vezes era misturado, a fim de se intensificar a potência do feitiço. As runas mais comuns eram seixos lisos e achatados, com símbolos ou hieróglifos pintados em um dos lados. Os praticantes do runemal sacudiam sua bolsa e lançavam as pedras no chão; as que caíam com os hieróglifos para cima eram então interpretadas.
            
A descrição sobrevivente mais explícita deste procedimento nos vem por intermédio de Cornélio Tácito (55? - 117 d.C.), orador e historiador romano; escrevendo no ano 98, em seu Germânia, capítulo 10, a respeito de práticas em uso entre as tribos teutônicas, ele registra:

“Mais do que quaisquer outras pessoas, eles têm o maior respeito pela adivinhação e pelos sorteios. Seus procedimentos para lançar a sorte são simples. Cortam um galho de uma árvore frutífera e dividem-no em varetas, nas quais marcam certos sinais distintivos, em seguida espalhando-as ao acaso, sobre um pano branco. Então, o sacerdote da comunidade (se a adivinhação for pública), ou o chefe da família (se for particular), após uma invocação aos deuses com os olhos erguidos para o céu, recolhe três pedaços, um de cada vez, que vão sendo interpretados conforme os sinais previamente marcados neles”.

As runas eram muito respeitadas no norte primitivo, sendo usadas para a escolha de sacrifícios ou vítimas para execução, quando a maior parte de um grupo deveria ser poupada. Neste caso, as runas eram consideradas agentes dos deuses, que escolhiam quem deveria morrer.

Embora as provas documentais de que dispomos tenham sido escritas por monges, sendo portanto de esperar que fossem largamente hostis às runas, encontramos registros sobre diversas aplicações da adivinhação rúnica. Um importante exemplo disso é encontrado na obra do monge Alcuin, chamada A vida de São Willibrord. Willibrord era um monge cristão enviado como missionário para a Frígia, um dos principais centros da crença pagã. Durante suas andanças pelo país, Willibrord não foi molestado até cometer o sacrilégio de batizar novos cristãos numa fonte sagrada, matando as vacas sagradas que eram mantidas ali.

Levados à presença do rei, os cristãos foram condenados mas o monarca ordenou que todos os dias, durante três dias, fossem lançadas runas para escolher três deles para execução. Embora outros tivessem sido mortos, Willibrord não foi escolhido pelas runas, sendo libertado para continuar sua missão. Isso foi interpretado pelos cristãos como intervenção direta de Deus, por intermédio das runas, para salvar o pregador.

Além de escolher quem deveria viver e quem deveria morrer, as runas eram consultadas regularmente como parte normal da estratégia militar. Na obra A Vida de São Ansgar, escrita no século IX, encontramos uma narrativa sobre o uso das runas pelos militares suecos e dinamarqueses. Anund, o exilado rei da Suécia, e seus aliados dinamarqueses tinham ocupado a cidade santa de Birka, na parte oriental da Suécia. A cidade tinha sido evacuada, permanecendo ali apenas o prefeito Herigar, com a intenção de oferecer um resgate aos vitoriosos para que não saqueassem o lugar. Os dinamarqueses decidiram lançar as runas para verificar se era a vontade dos deuses que a cidade fosse poupada.

“Eles determinaram que não seria possível que lograssem seus objetivos sem colocar em risco sua própria segurança, e que os deuses não permitiriam que o lugar fosse saqueado. Perguntaram, então, para onde deviam ir, de modo a obter dinheiro... e apuraram que deviam ir para uma certa cidade a alguma distância dali, na fronteira das terras que pertenciam aos eslavônios. Os dinamarqueses, acreditando que essa ordem tinha vindo do céu, retiraram-se do lugar e apressaram-se a encontrar um caminho que os levasse à outra cidade”.

As runas eram um artefato mágico utilizado largamente também pelos camponeses, e camponeses estão por demais preocupados com este mundo para gastar mais tempo com qualquer outro. Sua magia devia prover algo palpável, e qualquer declaração que magia usada em proveito próprio era necessariamente má era rapidamente desmentida.

Igualmente, os camponeses entendiam que não há nada gratuito. O campo extra cultivado significava um aumento proporcional de trabalho. O dinheiro extra conseguido por magia vinha com responsabilidades para a comunidade. E assim por diante. Uma dádiva demandava outra, e era melhor não prometer do que prometer demais.

Assim, o escopo da magia rúnica era circunscrito. Não é de se admirar, então, que não haja contos de magos rúnicos empregando seus poderes para adquirir posição política. Que as inscrições existentes estejam dirigidas para algum efeito prático: defesa contra inimigos; munição para um melhor ataque; melhoria da fertilidade e saúde; proteção do solo funeral contra invasões; espantando demônios, etc.

Num mundo onde o anonimato e a burocracia ásperos ameaçam nos engolir, não é de surpreender que as runas ressurjam. Elas foram criadas em semelhantes condições, quando da existência precária do indivíduo e da comunidade. Pois, assim como as tribos teutônicas, hoje a “tribo” humana se vê ameaçada. As runas oferecem o conforto necessário quando enfrentando um inimigo que parece invencível. Hoje, nos  voltamos para questões sobre equilíbrio e pureza na ação, na vida, nos motivos. E, por isso, nós nos voltamos para as runas.

A Origem das Runas: Perspectivas

quarta-feira, dezembro 7


As runas são muito mais que simples sinais fonéticos usados para escrever informações prosaicas pelas tribos do norte da Europa: seus significados simbólicos, sagrados e ocultos vão muito além das modernas concepções de necessidade prática.

A runa é, por si mesma, um conceito especial. Cada hieróglifo rúnico é uma unidade que engloba toda uma riqueza de conceitos, um verdadeiro repositório de conhecimentos e significados só visualizados pelos praticantes da arte rúnica. São caracterizadas por sua forma angular, que as distingue de todos os outros alfabetos do mundo. 

A palavra “runa” vem de uma raiz proto-germânica que significava, originalmente, “rugir”. Tempos depois, desenvolveu-se através do nórdico antigo para “run” (escrita secreta), e do gótico, para “runa” (mistério, sussurro). O cerne do sentido de todas essas palavras é “segredo sussurrado” e, obviamente, se relaciona a um tempo antes da invenção da escrita, quando todo o conhecimento arcano era transmitido oralmente. 

Miticamente, as runas são associadas a Odin (ou Wotan, ou Woden), o deus da inspiração, das batalhas, da sabedoria e da morte. As origens das runas está, se tanto, encobertas em muito mais mistério do que sua origem mítica. Muito embora já esteja historicamente estabelecido que, como alfabeto, os sinais conhecidos como runas derivam da escrita do norte da Itália (o itálico do Norte era a escrita dos etruscos, e acredita-se que essa escrita tinha sido levada para o Norte, na região báltica, pelos mercadores etruscos de âmbar), antes de possuírem alguma forma de escrita, os povos do norte da Europa empregavam símbolos pictóricos, gravados em rochas. A evidência arqueológica do vínculo entre os etruscos e o rúnico surgiu em 1812, quando 26 capacetes de bronze do quarto século a. C. foram encontrados em Negau — perto da atual fronteira entre a Áustria e a Iugoslávia. Os capacetes têm inscrições em palavras germânicas, desenhadas na escrita itálica do Norte. 

Particularmente corriqueiras na Escandinávia, tais inscrições pré-históricas em rochas, conhecidas como Hallristingnor, são datadas da segunda Idade do Bronze (cerca de 1300 a.C.), sendo provavelmente relacionadas aos cultos indo-europeus dedicados à fertilidade e ao sol. As inscrições incluem representações de homens e animais, partes do corpo humano, motivos de armas, símbolos solares, a suástica e variações das formas quadrada e circular. 

Com o tempo e em lugares diferentes, várias versões do alfabeto rúnico emergiram, enquanto algumas letras foram adicionadas, ou então suprimidas. Existem três variações principais das runas e um grande número de versões menores. Todas essas três variações eram expressões do mesmo sistema mágico/adivinhatório, adaptado às diversas condições tribais, políticas e climáticas nas quais as diferentes divisões da raça teutônica se desenvolveram. 

A mais antiga das formas maiores dos alfabetos rúnicos é o futhark tradicional ou teutônico. Consistindo em vinte e quatro letras, seu nome deriva do fato de que suas primeiras letras serem “f”, “u”, “th”, “a”, “r” e “k” — futhark. Era comumente utilizado no nordeste da Europa continental, entre os séculos V e VIII. Suas letras eram divididas em três grupos de oito, cada grupo sendo denominado um aettir, ou família. A cada aettir foi atribuído uma divindade: Freyja, Heimdall e Tyr. O mais antigo exemplo conhecido dessa seqüência de vinte e quatro runas encontra-se num bastão de madeira que data do período de 550 a 650 d. C., descoberto em 1895 em Arum, na Frígia ocidental, Holanda. O bastão mostra a inscrição edaeboda, que se traduz por “mensageiro que volta”. Na Frígia, têm sido encontradas runas gravadas em amuletos e bastões cerimoniais, muitas vezes feitos de Teixo, usados para a proteção, inclusive, dos viajantes. O amuleto encontrado em Britsum é um bastão de madeira com a inscrição rúnica “carregue sempre este bastão nos campos de batalha”, proteção mágica para algum guerreiro. Outro bastão, encontrado mais tarde, datado de cerca do ano 800, com a função ritual de dar poder sobre as ondas, talvez seja o único amuleto marítimo ainda existente. 

A segunda principal variação das runas é o futhark anglo-saxônico, sendo usado na Grã-Bretanha entre os séculos V e XII. Os anglo-saxões foram encorajados a expandir o futhark tradicional, primeiro para vinte e oito letras, depois para trinta e três, por causa das mudanças linguísticas que ocorreram a cada vez que Anglos, Jutas e Saxões se estabeleciam na Grã-Bretanha. Despojados de qualquer tipo de relacionamento regular com os teutônicos, seu dialeto se tornou, em breve, rico em ditongos, e — gradualmente — os ditongos começaram a ultrapassar em número as vogais, e o xamã anglo-saxônico providenciou novos símbolos para representar estes novos fonemas. Estes símbolos foram então postos no fim do alfabeto existente; mas o modelo do futhark tradicional continuou a influenciar o método anglo-saxônico de adivinhação rúnica. 

A terceira e última maior variação do futhark é o escandinavo ou nórdico. Empregado na Escandinávia e na Islândia, foi mais utilizado entre os séculos V e XII, tendo-se mais exemplos de escrita nesse futhark do que em qualquer outro. Estranhamente, apesar do futhark nórdico possuir mais fonemas do que o anglo-saxônico, ele tem apenas dezesseis runas. Isto porque cada Runa tem emprego dobrado ou triplo. Por exemplo, uma Runa representa tanto “k” como “g”. E quaisquer outros futhark tendem a ser não mais do que representações criptográficas de uma destas três variantes. 

Tem sido debatido entre eruditos o quão profundamente o uso das runas se deu. Alguns mantêm que seu uso foi confinado a inscrições, encantamentos e talismãs, e apenas raramente em poemas e documentos legais. Outros argumentam que as runas eram usadas amplamente em documentos e escritos similares. Parece bem possível que quaisquer documentos escritos em runas fossem feitos de cortiça ou papel, e pudessem facilmente ser perdidos ou destruídos, e que tal destruição fosse provável. A igreja cristã era bastante meticulosa destruindo tais coisas. 

Além do mais, se as runas fossem puramente mágicas, haveria pouca necessidade de variações no futhark básico. A linguagem na qual a magia é depositada pode facilmente ser estilizada, portanto mudanças na língua comum não se refletem em inscrições. Mais ainda, em se tratando de símbolos puramente mágicos, existe uma relutância de se fazer quaisquer alterações — observe a quanto tempo os símbolos zodiacais permaneceram inalterados. Com símbolos mais práticos, existe uma chance maior de mudança. 

O uso das runas continuou sem decrescer até aproximadamente o ano 1000. Durante os 400 anos até então, os cristão estavam fazendo convertidos na pagã Europa do norte. Muito se tem contado a respeito destas conversões a ferro e fogo, mas ainda há mais do que isso. Foram as classes altas que se converteram primeiro, e suas maiores motivações pareciam ter se centrado na crença de que o Cristianismo oferecia um mapa mais seguro do que os esperava após a morte. As classes média e baixa ainda permaneceram pagãs em muitas regiões. 

Os deuses pagãos eram venerados abertamente até o século XII e traços do uso rúnico sobreviveram até o século XVII, subterraneamente. Deve-se observar o fato de que, não obstante os poderes políticos, inquisições e éditos declarando o uso das runas pernicioso para a alma, elas sobreviveram. Do que não poderiam sobreviver não era um inimigo, mas uma força que nem se preocupava se elas existiam. Como muitos métodos de conhecimento esotérico, as runas requeriam longo estudo e somente os jovens mais promissores eram escolhidos para o rigoroso treinamento. Quando veio a revolução industrial, o tempo para tanto não mais existia; muitas pessoas, especialmente os jovens, estavam ocupados em buscar suas vidas nas fábricas. A estrutura social que mantinha os treinandos estava entrando em colapso rapidamente. 

Nessas condições, não é de surpreender que os elementos mais facilmente compreendidos e imediatamente usáveis eram os que sobreviveriam. Segue que os costumes e o conhecimento dos velhos modos eram mais fortes onde a revolução industrial não aconteceu com mais força. Foi no campo, na verdade, e não nas cidades, que os velhos modos sobreviveram. Mais ainda, como é o caso muitas vezes, não demorou muito para que as pessoas procurassem o que haviam perdido ou jogado fora. Quando o ocultismo começou a interessar as pessoas novamente, muitos indivíduos e grupos na Escandinávia, norte europeu, e Grã-Bretanha tentaram reviver os saberes rúnico e mítico. 

Muitas das elaborações destes ocultistas eram altamente imaginárias, e as runas eram normalmente ligadas a qualquer teoria esotérica que estivesse correntemente em voga. 

O século XIX viu não apenas o ponto culminante do materialismo em seus meados, como, pelo seu final, presenciou um renascimento do pensamento transcendental como nunca visto antes desde os dias pagãos. Mas a maioria das teorias era insustentável. 

As runas foram ligadas à Atlântida, a mundos antediluvianos, à Bíblia ou a Jesus (que, para alguns, era um ariano loiro de olhos azuis — a palavra “ariano” equivale, em sânscrito, a “nobre” e se refere aos povos guerreiros que surgiram perto do mar Cáspio com uma identidade racial própria por volta de 3000 a. C. Esses povos arianos invadiram a Índia por volta de 1500 a. C., colonizando a Grécia antiga e a Ásia Menor) e por aí vai. Era uma época quando a antropologia era um ótimo cabide para se pendurar uma especulação, e muitos ocultistas estavam dispostos a suprir falsas evidências para apoiar suas teorias. Alguns dos trabalhos eram bobos, outros eram muito bons, e outros eram, infelizmente, ligados perigosamente ao mal, carregando uma conotação de racismo e elitismo. 

A derrota da Alemanha, no final da Primeira Guerra Mundial, levou certos ocultistas alemães a exaltarem as runas como significantes de uma identidade nacional — parte da herança étnica da Raça Superior. Essa é uma perversão da filosofia que jaz por trás dos mistérios rúnicos, que ensina que os segredos das runas estão abertos a qualquer um, sem distinção de sexo, raça ou cor. Ninguém, afinal de contas, iria sugerir que o I Ching pode ser usado apenas pelos chineses; que apenas as raças árabes pudessem se tornar proficientes na Geomancia, ou que o Tarô fosse esperado a trabalhar somente nas mãos dos descendentes diretos dos ciganos ou antigos egípcios (ambas as raças apontadas como “inventoras” do Tarô). A verdade é que todas estas técnicas se moveram muito facilmente de uma locação geográfica a outra, e entre uma raça e outra, sendo virtualmente impossível determinar um grupo étnico detentor exclusivo do emprego das runas. 

No evento, a apropriação das runas pelos mais altos escalões do partido nazista não fez nenhum bem ao avanço do saber rúnico, nos anos subsequentes a Segunda Guerra Mundial. Hitler usou o velho símbolo ariano da Roda do Sol, a suástica, como o emblema do nazismo; Himmler tinha a insígnia da notória S.S. expressa em runas (um fato que escapou à atenção de muitas pessoas naquela época, e continua o fazendo), e depois do colapso da máquina de guerra nazista, os aliados, muito naturalmente, não quiseram ter nada a ver com as runas; nem mesmo a própria nação alemã, que diligentemente repudiou os nazistas e todos os seus trabalhos, e ansiosamente evitando a culpa de todas as maneiras. As runas foram conseqüentemente consignadas ao limbo esotérico. 

Somente quando a Segunda Grande Guerra desapareceu da memória e uma nova geração, que nunca havia experimentado as runas, se tornou adulta, é que o saber rúnico usufruiu de um renascimento. Este renascimento começou lentamente — como acontece com todos os renascimentos. Pesquisadores começaram a estudar os livros dos autores alemães, que haviam sido escritos no começo do século, e simultaneamente, os iniciados rúnicos da Escandinávia, Alemanha, Grã-Bretanha, e Estados Unidos começaram a disseminar informação sobre adivinhação pelas runas, que é o aspecto mais acessível — e por isso mesmo, mais popular — do saber rúnico. Nos círculos esotéricos, entretanto, não foi senão até os anos oitenta, quando o interesse pelas runas alcançou o ponto mais alto, que os guardiões da tradição rúnica deram a ordem para um maior fluxo de informação — desta vez, de uma natureza mais profunda e mais esotérica. É onde nós estamos hoje, no umbral de uma nova aurora da instrução rúnica.